quarta-feira, 23 de julho de 2008

"MOVA E ECONOMIA

SOLIDÁRIA"


Mario Sergio Cortella


A solidariedade em imensas lições! É exatamente essa a sensação
que se tem ao percorrer o conteúdo vivo, presente nesta obra. Ela aponta,
de forma vigorosa, para a partilha das esperanças e convicções, a indicação
de práticas e concretudes, a expressão de recusas e indignações.
Tudo isso lembra algo que, sem dúvida, moveu autoras e autores e
foi dito por Paulo Freire no seu discurso de despedida do cargo de secretário
municipal de Educação de São Paulo (1991):
Meu gosto de ler e escrever se dirige a uma certa utopia que envolve uma
certa causa, um certo tipo de gente nossa. É um gosto que tem que ver
com a criação de uma sociedade menos perversa, menos discriminatória,
menos racista, menos machista que esta. Uma sociedade mais aberta, que
sirva aos interesses das sempre desprotegidas e minimizadas classes populares
e não apenas aos interesses dos ricos, dos afortunados, dos chamados
"bem-nascidos".
Insisto: são imensas lições de solidariedade e, como é preciso repetir
sempre, a palavra "solidariedade", ao contrário do que muitos pensam,
não vem de "solidão", mas, isso sim, de "solidez", ou seja, daquilo que nos
deixa íntegros, que impede o estilhaçamento da nossa humanidade
compartilhante.
Por isso, a intenção da utopia solidária irmanada com a educação é prioritariamente afastar
a solidão, isto é, o estado de abandono ou a vida isolada sem proteção. Ou, como talvez dissesse
Guimarães Rosa, impedir que exista grande sertão sem veredas, já que, lá quase pela metade da
narrativa, registrou: "Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também,
cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!"
A gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Essas certezas nos vão sendo ensinadas por
também grandes mestres. Dois deles, ambos chamados Paulo (o Freire e o Singer), negavam ética e
politicamente a origem latina de seus nomes (pois paulu significa "pequeno") e ocupavam juntos,
em 1989, parte de um prédio na Avenida Paulista, em meio às imensas catedrais financeiras ali
imponentes. Um, Secretário Municipal de Educação, outro, Secretário Municipal de Planejamento;
ambos dedicavam-se à transformação de sonhos em realidades, de desejos em ações, de projetos
ideológicos em cidadania encarnada.
Naquele ano, os dois e suas equipes tiveram várias reuniões para verificar a legalidade, viabilidade
financeira e sustentabilidade orçamentária para a implantação de uma nova proposta para
a educação de jovens e adultos na cidade de São Paulo; deveria ser uma parceria efetiva entre os
movimentos sociais organizados e as instâncias do governo municipal, de modo a ser criada uma
dinâmica que ultrapassasse a idéia de campanha e se configurasse como um movimento, processo
vivo e participante. Desse esforço, somado ao de outras áreas de governo, surgiu, no final do
mesmo ano, o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova) que, na conclusão do
mandato, em 1992, estava com mais de mil núcleos pelo município e, ainda, disseminou-se como
inspiração para o restante do País.
O mais interessante é que Paulo Freire decidira, desde o princípio, ser necessário fazermos
um congresso que tratasse do tema alfabetização logo no primeiro ano da sua gestão; chegara,
inclusive, a propor que acontecesse no início de dezembro, permitindo muitos meses de preparação.
Havia um porém, que não nos houvéramos dado conta desde que ele iniciara as reflexões
preparatórias conosco: sempre falava em Congresso de Alfabetizandos, quebrando o velho hábito
de tratar do tema sem levar presencialmente em conta o sujeito ou, no caso concreto do analfabetismo,
a vítima.
Teria de ser, bradava nosso mestre Freire, um Congresso de Alfabetizandos! Em vez de reunirmos
apenas especialistas em Educação para falarem para outros iguais, a tarefa era organizar o
encontro de cidadãos e cidadãs ainda não-alfabetizados para poderem falar "de" analfabetismo. Há
uma brutal diferença entre falar "de" e falar "sobre". Quem fala "de", fala de dentro de si para fora,
tendo-se como sujeito da experiência; quem fala "sobre", fala externamente, tomando a experiência
alheia como objeto. Alguns de nós, por falta de vivência real, ficamos impedidos de falar "da"
fome, ou "do" analfabetismo, ou "do" desemprego; A fala daqueles ou daquelas que podemos
somente falar "sobre" não deve, claro, ser desprezada; no entanto, não é a fala de um "especialista"
e, como tal, precisa ser relativizada quando as pessoas vitimadas não se pronunciaram a contento.
Em meados de 1989, era preciso elaborar um cartaz que divulgasse a futura realização do
Congresso de Alfabetizandos (que, quando aconteceu, reuniu mais de 1.500 pessoas de toda a
cidade para debaterem os seus problemas e para que nós, convidados como agentes do poder
público, entendêssemos o que era urgente fazer). Certa noite, visitando um incipiente núcleo de
alfabetização na periferia da Zona Leste paulistana, Paulo Freire entrou em uma sala na qual, aos
45 anos de idade, um alfabetizando escrevia na lousa a primeira sentença completa de sua vida e,
dessa frase, surgiu o cartaz.
A frase, de conteúdo inclemente e veracidade inquietante, ainda com deslizes de gramática
e sintaxe (releváveis no indivíduo escrevente e inaceitáveis na sociedade que o excluiu), gritava:
"Nós construímos esta cidade, e nela somos envergonhados!".
Vergonha, humilhação, desvalia, constrangimento. Afronta à dignidade. Expulsão de infindos
obreiros mesmo enquanto a obra coletiva vai sendo construída.
Dificuldade para manter a coluna ereta e a cabeça erguida! Aí está a chave ética que exige a
edificação do "desenvolvimento sustentável"; tem de ser uma economia que sustente as colunas
eretas e as cabeças erguidas, negando assim uma cidadania encabulada, desonrosa, indecorosa e
que, no limite, afronta com violência o horizonte da fraternidade.
Temos de, com humildade, aprender a erigir a cidade que não envergonha, a partir de uma
pedagogia emancipatória e libertadora. Por isso, como veio central de todos os capítulos deste
livro, urge revigorar o que escreveu Paul Singer nas conclusões do primeiro deles:
A Economia Solidária é um ato pedagógico em si mesmo, na medida em que propõe nova prática social e um entendimento novo desta prática. A única maneira de aprender a construir a Economia Solidária é praticando-a. Mas, seus valores fundamentais precedem sua prática.
No mais, voltando aos começos do Grande Sertão: Veredas: "passarinho que se debruça –
o vôo já está pronto"... (...)

PREFÁCIO DO LIVRO : "ECONOMIA SOLIDÁRIA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS"

http://www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos/%7BD85647A6-2A37-4FD2-A4F6-20DD186E0A71%7D_econ_solidaria_educacao_JA.p
df

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails